28 maio 2009

Da perda de tempo

Parece que alguém conseguiu desvendar o que Bill Murray diz a Scarlett Johanson no final de Lost in Translation. O facto de este indivíduo se ter dado ao trabalho de descodificar uma coisa cuja beleza residia precisamente no facto de ser privada entre as personagens, totalmente elíptica, mostra apenas que, cinco ou seis anos depois, ainda há quem não tenha percebido o filme.

21 maio 2009

No dia da morte de J.B.C.

Ao sair do emprego, junto às Amoreiras e com destino à Avenida da Liberdade, soube logo que teria de passar pela Cinemateca. Amoreiras em direcção ao Rato, Rato à direita pela rua da Escola Politécnica, na Politécnica vira-se à esquerda, passa-se pelo Altis e entra-se na Barata Salgueiro. Junto ao hotel e olhando ainda de longe para a Cinemateca, reparo no facto de o portão estar fechado. E penso imediatamente no facto de, por não passar pela zona em domingos, feriados ou quejandos, ser aquela a primeira vez que o vejo encerrado. De forma cadenciada, pessoas abrem o portão e transportam materiais para a carrinha estacionada junto ao passeio. Sente-se à distância o peso do luto, como uma série de rumores que perpassam aquele palacete viscontiano.

Dirijo-me à janela onde normalmente se encontra afixada a programação e vejo apenas um mero aviso de nojo, de interrupção das sessões normais e da passagem de Johnny Guitar, amanhã, às 21h30m, com entrada livre.

Viro as costas e sigo o meu caminho, levando mais um cigarro à boca e incandescendo-lhe a extremidade. A única coisa que me passava pela cabeça eram as falas finais de King Lear:
"The oldest hath borne most: we that are young,
shall never see so much nor live so long."

Benard R.I.P (Actualizada)

Não há que escamotear: morreu hoje uma referência para mim. Os textos de Bénard da Costa influenciaram muito não só a minha maneira de ver o cinema como a minha forma de ver filmes. Em larga medida, foi na Barata Salgueiro que vi muitos dos meus filmes de eleição pela primeira vez (Bitter Victory, Europa 51, Il Gattopardo, Dead Ringers, Imitation of Life, etc etc etc) e onde defendi sempre que passasse os mesmos clássicos repetidamente, para poderem ser vistos continuamente por putos como eu outrora fui, cheios de vontade de conhecer mais e melhor. E foi, mesmo antes de frequentar a Cinemateca, no ciclo de filmes que programou na RTP2 no final da década de 90, que gravei muitos dos Hitchcock que ainda tenho, e que foram seminais para aquilo que sou hoje. Inclusivamente ontem, sem nada saber, requisitei Os filmes da minha vida / Os meus filmes da vida da Biblioteca do Cacem, para reler pela segunda ou terceira vez.

Depois havia o lado mau. O lado de barão, representante de antigas famílias bem, capaz dos maiores actos de nepotismo num organismo pública. A implacável soberba dos poderosos, que nomeiam um subdirector sem a mais pequena capacidade para o cargo e ainda são aplaudidos por isso. A recusa de qualquer fiscalização daquilo que fazia e o desprezo agustiniano por tudo o que estivesse fora do seu mundo.

O tempo dirá qual será o legado prático – aquele que não se contabiliza em ciclos de há 25 anos – de Bénard da Costa. Mas que desaparece parte integrante do que foi o cinema em Portugal no pós-25 de Abril, não se perspectivando, por onde quer que se olhe, um futuro melhor, parece claro. Que o mexianismo que ai vem sirva, ao menos, para louvar o que de bom o foi.

13 maio 2009

Across the 110th Street


Para Jackie Brown, já não há para onde fugir. Negra, 44 anos, hospedeira de bordo numa companhia aérea merdosa, há apenas que agarrar a única oportunidade que lhe resta. E que surge quando pode denunciar e roubar, simultaneamente, o traficantezeco de armas para o qual transporta ilegalmente dinheiro através da fronteira entre os EUA e o México. É este, numa penada, o enredo de Jackie Brown (1998), terceiro filme de Quentin Tarantino, uma das maiores obras-primas de uma carreira que, até ao momento, quase só tem obras-primas.

O brilhantismo do filme começa na forma como, a julgar pelos extras da excelente edição nacional em dvd, Tarantino adaptou Rum Punch (1992) de Elmore Leonard. No livro, a personagem principal Jackie Burke é branca. Mas aqui, e isso faz toda a diferença, Jackie Brown é negra. Por um lado, mais ainda do que para uma branca, um cadastro impeditivo de exercer a sua profissão e até uma pena de prisão, conquanto pequena, acarretariam o fim de qualquer vida possível. Alguém imagina esta mulher, mal paga mas altiva, “streetwise” no óptimo termo inglês, a trabalhar nas limpezas ou numa loja de conveniência? Sobretudo, Jackie nem sequer concebe esta opção. Só lhe resta a fuga para a frente.

Por outro lado, num aspecto ainda mais importante, a mudança racial é o que possibilita a Tarantino o mergulho, sempre anunciado mas até aí sempre adiado, no universo blaxploitation. Se a música ajuda (e é muito boa, soul e r n’ b a sublinhar a negritude, com destaque para a genial Across the 110th Street de Bobby Womack) é pelas cores setentistas, a um tempo garridas e vintage, bem como pelo imaginário que os códigos de honra ou a sua ausência anunciam (a pequena criminalidade ligada a armas e tráfico de drogas, realizada num cenário geográfica e socialmente demarcado – a parte negra de Los Angeles, cidade que aqui respira como nunca a vira no cinema) que Jackie Brown se anuncia. No limite, esta é uma reciclagem da blaxploitation num produto moderno e idealizado mais do que para sujas e perigosas salas de bairro, aproveitando a convenção mas vertendo-a numa obra do seu tempo, erguendo assim, em termos de estatuto, aquilo que nunca foi mais do que um sub-género de importância e escopo temporal limitados.



Para isso, muito contribui também a escolha do prodigioso par central, composto por Pam Grier e Robert Forster, respectivamente “vedetas” do cinema blaxploitation e da série b dos anos 70 e 80. Sobretudo, no quanto esta é dúplice: é óbvio que o objectivo imediato é o de convocar referências, ambientes, eventualmente até, para os conhecedores, memórias de épocas e de filmes passados. Mas também estes actores se encontravam numa encruzilhada semelhante à das personagens na época da feitura do filme. Esquecidos, com trabalho ou inexistente ou invisível, fizeram neste filme os papéis por que serão lembrados, emprestado uma gravidade e uma credibilidade às personagens que são parte integrante da genialidade de “Jackie Brown”. Pam Grier, desde então, faz parte do elenco da série The L Word; o fabuloso Robert Foster, por sua vez, tem apenas tido participações ocasionais em séries como Numbers ou Huff, continuando a participar em diversos filmes de série b. Se hoje têm carreira, podem ambos agradecer a Tarantino. Mas Tarantino também terá de lhes agradecer terem possibilitado que o seu filme não se tornasse uma mera torrente referencial, um museu poeirento para visitar uma vez e sair em busca de ar fresco.

Finalmente, importa referir o quanto Jackie Brown foi, à época, uma surpresa. Despindo-se de todos os estratagemas narrativos, focando-se pela primeira vez numa narrativa linear, Tarantino transforma o enredo num mcguffin ao qual, a uma segunda visão, pouca atenção é prestada. O que sobra é um conjunto de personagens metodicamente definidas, mormente nos assombrosos diálogos que Tarantino escreve com um ritmo e uma qualidade literária como poucos conseguem, cujas motivações são objectos para um constante jogo de esgrima que, no limite, justifica o filme. A esse factor acrescente-se, de forma inesperada e improvável, o classicismo com que Tarantino o faz: angulos de câmara comuns e sem grande risco, travellings e panorâmicas como mandam as regras e uma "decoupage" cartesiana, tremendamente simples mas brutalmente eficaz. Desde Reservoir Dogs (1992) que Tarantino não precisa de provar nada a ninguém; mas o brilhantismo que perpassa pela economia e a simplicidade virtuosas de Jackie Brown devem ter custado muito a muita gente.



Para terminar, apenas uma comparação: se me pedirem para nomear cineastas que, nos primeiros anos da sua carreira, tivessem sido imediatamente tão influentes, lembrar-me-ia apenas de Goddard e Coppola. Quanto à importância de Tarantino para o Cinema enquanto arte... não tenho dúvidas de que já está ao nível daqueles dois.

04 maio 2009

IndieLisboa 2009 (IV)


J'embrasse pas de André Téchiné, Herói Independente, Cinema City Classic Alvalade, 02 de Maio, 18h15m

J’embrasse pas (1991) entende-se bem enquanto duplo de Rendez-Vous (1985). Também este é um filme sobre uma personagem ambiciosa mais do que talentosa, que vai da província para a metrópole não apenas para procurar o sucesso enquanto actor mas para fugir ao sufoco da sua existência primeira e das muitas dificuldades que encontra no percurso. O Pierrot que seguimos, magistralmente interpretado por Manuel Blanc, não tem qualquer noção das suas limitações e, falhado o sonho de actor (numa sequência arrepiante, em que sentimos o desfasamento do seu talento face às suas ambições) inicia uma espiral de decadência através da prostituição homossexual, que culminará não apenas na sua degradação física como na sua derrota anímica, composta de paranóia e solidão. O argumento de Jacques Nolot, espiral pormenorizada e bem burilada, oferece a André Téchiné mais uma das suas crónicas de uma Paris decadente e escura, onde a persecução dos objectivos acarreta sempre um custo alto a pagar. Aqui, o francês opta por um tom granulado e com filtros amarelos, que não apenas casa bem com a ambiência nocturna do filme como sublinha a sordidez do que estamos a ver. Longe da ironia ácida que Chabrol deposita nas suas críticas burguesas, Téchiné, nunca particularmente depurado mas sempre virtuoso, assina aqui mais um belíssimo filme, como o foram quase todos os que realizou nas décadas de 80 e 90.

E acabou assim, para mim, mais uma edição do IndieLisboa. A grande falha a lamentar foi Ballast de Lance Hammer, que acabou por vencer a Competição Internacional e cuja terceira sessão esgotada me obrigou a ver o excremento de que falei anteriormente. Mesmo tendo visto quase tudo no periférico Cinema City de Alvalade, a ideia com que fiquei foi a de um festival vibrante, com uma energia e uma selecção de filmes que se torna cada vez mais essencial para o estagnado panorama cinematográfico lisboeta. Devia haver um por mês.

02 maio 2009

IndieLisboa 2009 (III)


Une nouvelle ère glaciaire de Darielle Tillon, Observatório, Sexta-feira 01 de Maio, Cinema City Classic Alvalade, 18h15m

Numa das primeiras edições do Indie, à saída de Wild Blue Yonder de Werner Herzog, um famoso estrangeirado blogoesférico virou-se para mim e afirmou: "Ontem caguei e o que saiu foi mais bonito". O único comentário que tenho a fazer acerca deste filme é mesmo esse.