31 agosto 2010

A Terceira Via



O sociólogo Anthony Giddens cunhou, com extremo sucesso, o termo “terceira via” para designar a organização económica e laboral, no seu entender desejável, das sociedades pós-industriais no século XXI. A ideia base, aqui necessariamente reduzida, é que num contexto em que o capitalismo puro e duro se revela indesejável e em que a social-democracia se revela ineficaz, a solução é criar condições para uma economia de mercado eficiente ao mesmo tempo que se salvaguardam os direitos e a solidariedade sociais.

Como tal é feito, pouco importa para aqui. Parece-me que esta é uma boa imagem para designar aquilo que, desde Memento (2000), Christopher Nolan tem tentado ser no cinema contemporâneo. Num contexto mediático tantas vezes dividido na dicotomia entre comercial e autoral, Nolan quer ser a “terceira via”, o cultor do blockbuster com conteúdo, do espectáculo com alma, do comércio de qualidade. Saber se o consegue, essa é a dúvida que, para os que vêem, foi respondida na qualidade de única “cause célèbre” do tépido Verão de 2010.

Inception é o seu filme mais ambicioso e o que, exceptuando Memento e, talvez, Insomnia (2002), menos me desagradou. Escrita ao longo de dez anos, a história de um grupo de ladrões que se imiscui nos sonhos de diversas pessoas para lhes roubar ideias, contratado para inverter o processo e plantar uma ideia na mente de um sujeito é, naquela que constitui a sua maior qualidade, uma benévola tentativa de renovação do "heist movie", tradição que só David Mamet tem mantido com regularidade e qualidade. No caso, enquanto que o interesse do dramaturgo americano é criar situações que promovam a sua virtuosa utilização do pentâmetro jâmbico, o cineasta britânico tem uma saudável vontade de mostrar o que nunca foi visto, bebendo em Spielberg, Lucas e Zemeckis.



Lendo apenas a sinopse, como imaginaria eu Inception? De uma de duas maneiras: a) como um filme trash, empenhado em dar entretenimento de linha de montagem "grindhouse" (a parte que me agrada mais é precisamente o início do filme, a escolha das personagens com nomes como O Arquitecto ou O Alquimista, possível de imaginar num filme desses); ou b) algo de mais tarkovskyano, uma meditação abstracta sobre a natureza dos sonhos onde a relação causal entre os acontecimentos e a acção propriamente dita fossem mantidos ao mínimo e fosse privilegiada a componente metafísica. Christopher Nolan acha que no meio está a virtude, ignorando que o mais das vezes a virtude é uma chatice. De um lado, conversa a dar com um pau, explicação a par e passo de todos os pressupostos que enformam o argumento e um passado torturado do protagonista, competentemente interpretado por Leonardo DiCaprio. De outro, e o que desbarata o filme, uma fatigante preferência pelo espalhafato (a sequência da perseguição na neve é dos momentos mais enfadonhos que vi este ano) e alguma inépcia visual, consubstanciada num barroco irritante e numa fotografia queimada que Michael Bay não desdenharia. Parece que, no limite, o que interessa a Nolan é o grande espectáculo, o vazio prazer sensorial, temperado aqui e ali com toques de narrativa, desde o enfoque inicial na “ciência dos sonhos” à cansativa viagem ao passado conjugal de DiCaprio, onde Marion Cottillard é completamente desbaratada. O melhor exemplo disso é a ideia do sonho dentro dosonho dentro do sonho, o melhor exemplo do gigantismo da empreitada.

É certo que há Joseph Gordon-Levitt, cada vez mais o melhor actor americano da sua geração (o que será feito de Michael Pitt?) e uma fantástica cena de porrada numa sala rotativa e que isto é muito melhor que os insuportáveis filmes da série Batman… mas isso também não é padrão para nada. E aqui voltamos à introdução: mais do que uma qualquer dialética, a “terceira via” é uma tentativa de súmula que elimina aquilo que podia haver de modernizador e de original numa síntese (síntese essa que só Spielberg e Zemeckis, a espaços, têm conseguido fazer), criando um meio-termo incaracterístico - o que neste caso até nem chateia muito, porque nenhuma das partes, isoladamente, conseguiria redimir o todo.

Perante esse desequilíbrio fulcral, a”terceira via” tende a não agradar a ninguém. Bem, neste caso, até agrada a muita gente.

De volta!