31 outubro 2010

Tempestades Interiores


Ang Lee tem uma carreira estranha: não é normal que o melhor dos tarefeiros do actual cinema americano, o que melhor segue a tradição “pau para toda a obra” da época dourada de Hollywood, seja asiático. Nem tão pouco é normal que mesmo o mais bem sucedido dos seus filmes asiáticos, Crouching Tiger Hidden Dragon (2000), seja também ele um ersatz do cinema da Shaw Brothers ocidentalizado para espectadores não conhecedores dos filmes do estúdio. No western (Brokeback Mountain, claro, mas também Ride with the devil), no filme de super-heróis (Hulk, sobre uma pobre vítima que espanca stewards) ou no melodrama de raiz norte-americana (este extraordinário The Ice Storm), Ang Lee filma de forma personalizada, incorporando todas as figuras de estilo do cinema americano – que travellings fantásticos! – e fazendo-nos esquecer a sua proveniência cultural. Algo tanto mais estranho quanto a longa tradição de estrangeiros em Hollywood, com os germânicos à cabeça, nunca deixando de fazer cinema americano, influiu de forma decisiva na definição dessa mesma cinematografia – como teria sido Hollywood sem Ernst Lubitsch? Lee, pelo contrário, “dilui-se” no material, não deixando nunca de fazer óptimos filmes por isso.

The Ice Storm (1997) é muito provavelmente o seu melhor filme. Passado durante o feriado de Acção de Graças em 1973, em pleno desencanto do escândalo Watergate (The president really was a crook), a narrativa acompanha duas famílias de vizinhos em pleno processo de desagregação. Numa, a dos magníficos Kevin Kline e Joan Allen, o divórcio aproxima-se a passos largos com um pai adúltero e uma mãe que rouba em lojas; na outra, com Sigourney Weaver em modo hippie envelhecida, essa hipótese já nem é colocada, por mero comodismo. O escape reside no sexo (as personagens de Kline e Weaver estão envolvidos; um dos clímaxes do filme passa-se numa festa de troca de casais), álcool e outras emoções furtivas. Em cenários no futurismo típico dos anos 70, os filhos começam a seguir as pisadas dos pais, dedicando-se ao consumo de drogas e começando a experimentar com a sexualidade. Em ambos, nota-se um sintoma preocupante: aquilo que era suposto servir de escape, permitir o divertimento, expandir a consciência, já nem paliativo consegue ser. A rotina sucede-se, o vazio prolonga-se e antecipa uma tragédia que, no menos subtil dos aspectos do filme, ganha forma na tempestade que lhe dá nome.

Filme sobre a decadência moral da small town americana e sobre o desencanto gerado pela era Nixon (brilhante a cena pseudo-coital em que Christina Ricci enverga uma máscara do presidente), The Ice Storm não é apenas um filme belissimamente filmado, ultrapassando de forma metafórica o kitsch da sua época num cromatismo cinzento e monocórdio e filmado num classicismo destro e loquaz. É, sobretudo, uma enorme re-apropriação e transformação de uma tradição cinematográfica de exaltação dos valores dos pequenos núcleos proto-urbanos, que de guardiões da pureza moral se transformam nos locais onde a corrupção moral e a depressão generalizada se manifestam com mais força. O que, por sua vez, demonstra a grande virtude de Ang Lee no contexto cinematográfico actual: longe de mero artesão capaz de cumprir orçamentos e horários de rodagem, quanto mais de um qualquer case study de aculturação, Lee é um extraordinário caso de adaptação ao material que lhe é dado e tremendamente eficaz no modo como quase sempre encontra o tom certo para passar uma ideia cuja transmissão alguém nele delega. Nos tempos que correm, isso é algo de inestimável.

24 outubro 2010

Boston, Massachussetts


No cinema americano actual, a cidade de Boston tem representado um interessante novo filão a explorar. Começando por Good Will Hunting (1997), passando por Mystic River (2003) e The Departed (2006) até aos filmes de Ben Affleck (Gone Baby Gone, 2007, e este novo The Town), Boston aparece como uma cidade horizontal (habitações baixas, separadas por milhare de árvores frondosas), que esconde bairros pobres e habitações sociais onde os códigos de honra estão intimamente ligados à sobrevivência. Matt Daman e Ben Affleck têm sido instrumentais neste impulso, recuperando-se o segundo de uma carreira na interpretação toldada, em igual medida, por um misto de falta de talento e más escolhas.

The Town, segunda longa-metragem de Ben Affleck, centra-se na tradição das quadrilhas de assalto a bancos originárias do bairro de Charlestown e surpreende pela qualidade demonstrada pelo actor na realização, com câmara segura, capacidade de levar com segurança a narrativa de um ponto ao outro e, sobretudo, talento na definição do ambiente citadino, na criteriosa utilização da geografia da cidade e na explicitação de um código de conduta assente em valores familiares (filiais ou afectivos) baseado na lealdade. Ben Affleck filma bem, na tradição pragmática de um certo cinema de acção que podemos remeter tanto para Eastwood como, por exemplo, para um Don Siegel.

No entanto, The Town não me deixou tão satisfeito quanto gostaria. Falta ainda a Affleck a capacidade de transcender este sólido material (afinal de contas uma típica história de heist movie sobre um assaltante que conhece uma mulher e por ela quer mudar de vida) em algo de superior, em mais do que um filme que se vê bem mas que muito dificilmente perdura na mente do espectador. Que se inspire, por exemplo, no trajecto de Eastwood (que de actor de recursos limitados palmilhou até se tornar num dos grandes cineastas do seu tempo), que aproveite as portas que a fama lhe abre (o elenco de luxo contas com as participações do magnífico Jon Hamm e da belíssima Rebeca Hall) e pode ser que venhamos a ter cineasta.

18 outubro 2010

O único dia fácil foi ontem



Num ano em que tudo parece confirmação ou desilusão, apenas três cineastas me pareceram verdadeiras surpresas: o chileno Pablo Larrain, a americana Kelly Reichardt e o filipino Brillante Mendoza (ainda não pude ver o La Teta Asustada de Claudia Llosa). Num tempo em que as guerras acontecem lá longe e as crises são espectáculos televisionados, nos seus diferentes tipos de realismos, mostram espaços em ruínas, vidas difíceis, escondem os néons e os ipods e mostram-nos existências difíceis, cenários perto do apocalíptico (já tidos como normais) e uma existência em que as crises, tanto pessoais como ontológicas, são o modo de vida, numa inversão difícil de conciliar com o mundo low cost em que o barato quer imitar o luxo. Diga o senhor A.O. Scott o que quiser, esta nova forma de realismo está a produzir rebentos em todo o mundo e não só nos EUA e parece-me ser uma clara resposta a um mundo que muitos querem ver como misto de reality shows, telemóveis topo de gama e fornicação entre famosos. A busca por algo de real e vital é inerente a qualquer forma de arte e o porto seguro em alturas de crise. Em cada um dos filmes destes cineastas, há um dedo do meio em riste ao Avatar de James Cameron.

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Para já focamo-nos no filipino, com uma pergunta que respondemos, em Portugal, com ano e meio de atraso: é Kinatay, lançado directamente em dvd pela Alambique, o murro no estômago apregoado em Cannes 2009? É-o, de uma maneira completamente diferente do que estávamos à espera. Porque nele Mendoza ensaia um sub-género de que, creio, será o único cultor (Gaspar Noé? Que é isso?): o snuff movie arty. História de um aspirante a polícia que tem um doloroso baptismo de fogo numa noite infernal nos arredores de Manilla, é um filme excessivamente gráfico, excessivamente pretensioso, excessivamente tudo. O filipino não poupa nos efeitos, nos sons esparsos, na tentativa de criar ambiência, e nem sempre se sai a contento. Simultaneamente, há demasiados pormenores literais, que tornam o filme numa experiência amiúde repugnante. Tudo isto seria problemático, não fosse essencial à própria experiência do filme, um exercício em perturbação, em pesadelo, uma espécie de escatologia noctívaga que encontra nos bas fonds uma motivação quase ontológica, como que mostrando ao espectador como sobreviver quando se tem esterco até aos cotovelos. O inocente Peping, que acompanha um grupo de polícias corruptos que, como biscate, matam e desmembram uma prostituta a mando de um qualquer gangster, vive num mundo a todas as outras horas luminoso e até se casa num início do filme que, à maneira do Saló de Pasolini, em nada prenuncia o Inferno que se segue e para o qual é lançado de supetão, sem que ninguém o espere. O que nos leva directamente ao cerne desta obra com poucos ou nenhuns simbolismos (ok, aquele plano do frango a ser cortado, no início do filme, acaba por ser referencial à posteriori): Kinatay, no modo como mostra o antes e o depois onde nada parece ir acontecer ou ter acontecido e na forma como aqueles homens, antes e depois da carnificina, falam de tudo com toda a normalidade, é um brilhante filme sobre a banalização do mal, o modo como este se entranha nas vidas daquela gente, de como já é tão natural quanto qualquer outra actividade. Podia perder 20 minutos, podia ter soluções menos pretensiosas e podia não haver tanto gore? Não. Mendoza, na sua arte, revela-se um pragmático; sem todas estas causas não haveria nenhum efeito.

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Kinatay é um diamante em bruto. Lola é um diamante laminado, um futuro dvd pronto a caucionar as estantes de muita gente que nem com luvas de pelica seria vista a tocar em Kinatay. Apaixonei-me por ele num momento simples mas suficientemente sublinhado para ser de imediato visto como essencial: a velhinha Sepa, num cenário cinzento e ventoso, tenta acender um, dois, três, seis, oito fósforos, todos de imediato apagados pela intempérie, até conseguir acender uma vela em nome do neto assassinado naquele local na noite anterior. Uma vela que o mesmo vento, provavelmente se encarregará de apagar poucos minutos depois. Numa Manilla em que a vida é um gigantesco PEC, chegando ao ponto de algumas ruas terem de ser percorridas de barco devido às monções, duas avós digladiam-se surdamente em prol dos netos, um assassino outro assassinado, num duelo de perseveranças que se saldará num honroso empate. Contido, seco, não perdendo jamais o controlo do seu frágil equilíbrio sentimental, reinventa o melodrama, sublimando-o em dois pólos inesperados. De um lado, mostrando-nos as avós perdidas num estranho labirinto jurídico, onde ninguém quer saber delas ou daquele caso e onde uma palavra da cunha certa leva mais longe do que qualquer requerimento. Do outro, é um filme muito mais “etnográfico” do que Kinatay (que se passava num não-lugar, uma mansão da morte onde as prostitutas vão para ser retalhadas), onde se consegue encontrar, a um tempo, cenários de repressão (a omnipresença da violência policial) e momentos de generosidade única (genial a sequência em que a lola enlutada percorre de barco o seu bairro e recebe os donativos dos vizinhos para a organização do funeral). Se, como um dia me disse alguém que agora não vem ao caso, o cinema é a única arte que consegue mostrar os locais do mundo (a literatura, em toda a sua infinita possibilidade, só os consegue evocar), Lola vive da respiração de uma cidade, do exacto local em que uma cultura e a necessidade de sobrevivência se encontram. Até agora, não vi melhor filme em 2010.

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No final de cada um dos filmes, há um retorno à normalidade que não pode deixar de parecer estranho. Pepping, ainda abananado, passa a ter como maior problema o furo no pneu do táxi que o leva a casa, onde o esperam a esposa e o filho recém-nascido. As duas avós vão à vida delas, cada uma para seu lado, onde as esperam outros problemas e outras tarefas. Se há algo de tão fútil como uma mensagem, tanto em Kinatay quanto em Lola, ela é de que suja-se as mãos o quanto for preciso na esperança de que o dia de amanhã seja mais fácil. O problema é que o único dia fácil foi ontem.

10 outubro 2010

A vida de Bob


Quem já experimentou o desemprego sabe que há nele uma condição insidiosa. No primeiro mês, pensamos todos que vamos descansar um pouco, fazer render o peixe, antes de atacarmos o mercado de trabalho. Quando finalmente o fazemos, percebemos que é o mercado de trabalho que nos ataca a nós. Os dias sucedem, enfadonhos mas estranhamente velozes. Do mesmo modo que, quando trabalhamos, o que fazemos define-nos em grande medida, lentamente começamos a pensar em substituir o “estou desempregado” pelo “sou desempregado”. Na altura em que a almofada do Centro de Emprego começa a ameaçar desaparecer, já aceitamos aquilo que nos oferecem. Quando damos por nós, a ideia que fazíamos das nossas capacidades e das nossas ambições alterou-se irremediavelmente.

Comparado com a experiência retratada em Raining Stones (1993) de Ken Loach, o retrato em cima é de um tempo paradisíaco. Até porque nesta periferia de Manchester, a ambição há muito que desapareceu, inclusivamente da própria textura daquela sociedade. É talvez demasiado ilustrativo o momento em que o veterano inglês põe na boca de uma personagem que olha para dois jovens a frase “só lhes resta drogas, álcool e desespero”. Mas, retratando o desemprego biscateiro que surge dos escombros do Tatcherismo, nos anos perdidos de John Major, antes da revolução globalizante de Tony Blair, é difícil não ver neste filme, o maior sucesso de Loach em muitos anos, um poderoso efeito de verdade. Não é uma questão estética; antes uma profunda ligação de Loach a uma camada social e a uma paisagem específicas, como se fosse um acto de amor mostrar as vítimas de um dos mais poderosos apartheids sociais. Por outras palavras, é como se houvesse uma ligação tão forte que o cineasta pode perfeitamente dar-se ao luxo de ser pouco imaginativo sem que o filme sofra com isso.





E Raining Stones, ainda que superlativamente filmado, num estilo quase documental e com um excelente trabalho de câmara, é do menos imaginativo que pode haver, numa tradição de cinema social quase anacrónica. Numa altura em que Mike Leigh extravasava todos os limites do realismo com Naked (1993), Loach embrenhava-se neles, filmando com segurança e conhecimento de causa. Um daqueles filmes em que a falta de imaginação é uma virtude pois, por um improvável golpe de asa, a acumulação episódica de que o filme faz método até à meia hora final em algum momento o enfraquece. Na sucessão de episódios em que Bob (maravilhoso Bruce Jones) é humilhado (desde ser despedido de uma bar, na sua primeira noite, por fazer o seu trabalho a levar com um jacto de esgoto que limpava pro bono) surgem desde momentos de humor delicioso (o roubo da relva do clube conservador local) e momentos francamente comoventes (o enorme Ricky Tomlinson, da hoje esquecida série The Royle Family, a chorar depois de aceitar dinheiro da filha), subjaz essencialmente uma ideia: a da necessidade de manutenção da dignidade humana, assente em valores como a perseverança e a solidariedade. O que colmata as limitações estéticas derivadas talvez de um entendimento demasiado curto das possibilidades e funções do realismo britânico.

Apesar de tudo, existe um fio narrativo em Raining Stones e que, na sua ambiguidade, acaba por ser a sua maior vitória. Afinal de contas, no período da vida de Bob que acompanhamos, tudo gira à volta da sua vontade de propiciar à filha uma primeira comunhão digna, com caros vestido e sapatos novos. Não abandonando nunca um ponto de vista socialista (no placard da associação de condóminos lê-se “Is there a socialist alternative in England today?”), há uma ideia do fenómeno religioso que avança do respeitoso (a personagem que fala do ópio do povo é uma mera nota de rodapé, o catolicismo de Bob permanece inalterado e nunca é julgado) ao francamente solidário. No limite, avanço dizer que o retrato do padre e da forma como, contra pelo menos as leis de César, redime Bob e lhe dá um novo começo, podendo ser entendida como calculismo da parte de um autor que muitos apelidam de simplista, é prova de uma maior complexidade do que à partida seria de esperar, quase se sentindo a simpatia do cineasta por aquele padre pragmático e lúcido. E é, ao mesmo tempo, uma singular demonstração de uma condição muito peculiar ao desemprego: a maneira como, simultaneamente, estamos completamente sozinhos e, de certo modo, algo dependentes da comunidade. Bob salva-se precisamente por essa forte ligação à comunidade. O que acontece aos que não a têm?

Raining Stones é o melhor filme que vi de Ken Loach (também, valha a verdade, não vi muitos), um objecto marcante nos anos 90 e uma demonstração superlativa de realismo social(ista), equilibrando sabiamente o pessoal e o político. E um filme que importa ver no Portugal de hoje.

05 outubro 2010

Muito cá de casa (II): a Notorious necessidade de Cinema na RTP2

O post 300 deste blog vai ser marcado pela primeira vez que alguém ouve a minha galinácea voz neste blog. Na senda de uma série de videos que estamos a colocar no blog da petição, ponho aqui o meu. Uma pequena reflexão sobre as questões que me motivam a participar nesta iniciativa. Espero que gostem e que nos continuem a apoiar nesta nossa luta.

A Notorious necessidade de Cinema na RTP2 from Miguel Domingues on Vimeo.